Opinião Vida de Cachorro

0
686

Quando era criança, e já se vão mais de meio século, todas as casas tinham o seu cachorro, quase sempre um bom vira-lata, sem raça definida, pedrigree ou coisa que valha. Eram bons amigos, companheiros de todas as horas, mas não eram considerados membros da família. Longe disso: não entravam dentro de casa, comiam o que sobrava e como banho (e bem de vez em quando), tomavam um jato de água e uma boa esfregada com sabão comum… 

Nelson FukaiQuando morriam, eram colocados em caixas de sapato ou caixotes de papelão, dependendo do tamanho, sendo enterrados no quintal. A gente até derramava umas lágrimas, coisa de criança, mas daí um tempo já nem se lembrava mais do local onde tinham sido enterrados O importante é que em vida davam e recebiam muito carinho, cada um no seu papel. Nosso ativismo se resumia em abrir os portões e permitir a entrada de todo e qualquer cachorro no nosso quintal, tão logo fosse avistada uma carrocinha. Além de xingar os laçadores quando estes conseguiam o seu intento de aprisionar um animal.

Apesar desta grande aproximação que sempre tiveram com os humanos, os cachorros sempre foram tratados como animais e não me consta que tenham feito passeatas ou reivindicações para receberem tratamento diferenciado dos outros bichos. O que aconteceu na realidade é que a revolução das relações entre pessoas, principalmente entre familiares, acontecida nas últimas décadas, acabou por criar grandes vazios afetivos. O cachorro, por sua docilidade e por estar mais por perto, foi eleito como a solução perfeita para preencher esta carência. Não é o cachorro que precisava de mais carinho, era o homem que precisava se apoiar em alguma coisa para preencher vazios de sua vida. Claro que é muito bom ter um cachorro e tratá-lo com carinho, mas sem confusão de valores. Ele não pode ser o centro de atenção da família, não se deve superestimar o carinho instintivo que ele retribui aos afagos e nem deve ser utilizado como apoio no desenvolvimento de crianças. Por mais que ele tenha reações que, equivocadamente, muitos consideram próximas de um humano, nunca se deve esquecer que o cachorro é um ser irracional e sem sentimentos, o que ele tem é bons instintos (em algumas raças, pois, em outras, ele é naturalmente agressivo).

Algumas semanas atrás, ativistas “invadiram” um laboratório e “roubaram” centenas de cães que eram utilizado em “pesquisas científicas”. Esta é a descrição simples e incontestável do fato. Os invasores alegaram que, por maior importância que tivessem no experimento da descoberta de novos medicamentos, não justificava aplicar-lhes sofrimento, que eles consideravam desnecessário. Esta é uma questão polêmica e os ativistas podem até ter razão, mas aí estão discriminando outros animais. Um boi é tão animal como um cachorro e o seu sofrimento é muito maior, afinal, seu desgraçado fim está decretado antes mesmo de nascer. Deveriam, então, os ativistas invadir as fazendas, libertar todos os bois, principalmente os que estão na fila do abate e levá-los para casa, livrando-os do assassinato em massa praticado pelos pecuaristas. Mas nessa briga os ativistas não entram, de vez que um boi não dá para carregar no colo, faz sujeira fora do lugar, não cabe no sofá da sala e, principalmente, é insubstituível num churrasco.

Vivemos hoje no país a ditadura dos que se julgam “do bem”, dos politicamente corretos, que tentam (e muitas vezes conseguem) impor à força suas opiniões, mesmo quando são minorias (e quase sempre são). Existem grupos de ativistas para todos os gostos e na maioria dos casos defendendo o lado do bem. Mas precisam fazer valer as suas opiniões democraticamente. Ao utilizarem a violência e outras ações ilegais como meios para atingir seus objetivos, tiram a legitimidade de suas lutas. E sempre é bom lembrar que existem milhões de crianças sofrendo com fome, frio, doença, miséria, etc., e muitos poucos ativistas preocupados em tirá-las desta situação. Dá até para pensar se estas crianças não gostariam de ter uma vida de cachorro!!

NELSON FUKAI é engenheiro, escritor e analisa questões do presente e passado da comunidade nipo-brasileira. E-mail: nelsonfukai@yahoo.com.br.