Costuma-se dizer que em qualquer sociedade por mais evoluída que seja existe a divisão de classes, porque os indivíduos não são iguais.
Em termos de igualdade aristotélica isso é certo: tratar igualmente os iguais e, desigualmente, os desiguais.
Prescreve a nossa Constituição que todos são iguais perante a lei. Creio que é no sentido da igualdade de que falava Aristóteles. Mas, não é o que ocorre na nossa sociedade em que a expressão “cidadão comum” incorporou-se no vocabulário nacional.
O que é cidadão comum? Difícil de definir porque a cidadania não comporta adjetivação: ou a pessoa é cidadão, sujeito de direitos e obrigações, ou ele não o é. Mas, se existe o cidadão comum é porque deve existir aquele que não é comum: o cidadão especial ou o cidadão de primeira categoria. Assim temos o cidadão especial ou de primeira classe, de um lado, e o cidadão comum ou de segunda categoria, de outro lado!
Mas, o que é ser cidadão comum ou de segunda classe? Talvez alguns exemplos do dia a dia possam explicar melhor do que as definições dos eruditos. São cidadãos comuns os que não são protegidos por forças de segurança pública e, quando vitimados, se escaparem com vida, amargam horas no balcão de uma delegacia para registrar a ocorrência; locomovem-se por via de transporte público impróprio para o ser humano, espremido e equilibrando-se nas pontas dos pés levando cotoveladas, quando não são pisoteados; nos hospitais públicos são atendidos por seguranças para fazer as triagens e se tiverem que ser internados ficam largados nos corredores à espera de uma vaga, por alta ou morte de um paciente; não conseguem dar aos filhos uma educação razoável; não conseguem obter os remédios de que necessitam nas chamadas farmácias populares. Enfim, é o cidadão que sustenta a prole exclusivamente com o seu trabalho suado, no campo ou na cidade, e é identificado por um número de CIC para pagar impostos, prestar o serviço militar, servir de jurado, trabalhar nas mesas eleitorais etc. Resumindo, só lhe cabem obrigações sem retorno de serviços públicos básicos. Seria um mero objeto do direito não fossem as obrigações que lhe são impostas.
Os cidadãos especiais são os que não sofrem das deficiências retro apontadas, por pertencerem a uma casta privilegiada. São os membros de Poder ou detentores da parcela do poder político do Estado, ou cidadãos muito próximo deles, os que acumularam riquezas sem o trabalho árduo. A maioria deles têm segurança pessoal assegurado pelo aparelhamento estatal, andam de veículos pretos de última geração estendidos a seus filhos que frequentam as melhores escolas do País. Empreendem viagens fantásticas ao exterior e com frequência, sempre se utilizando de generosos cartões cooperativos, uma invenção do governo FHC. Comem e bebem do melhor hospedando-se em hotéis cinco estrelas. Tudo isso, à custa do cidadão comum.
É verdade que entre uma e outra classe existe o que antigamente era conhecida como classe média. Seus remanescentes conseguem sobreviver acima da linha da miséria, suprindo com recursos próprios as necessidades básicas nas áreas da saúde, educação e transportes, mas são vulneráveis no que tange à segurança pessoal que somente o Estado poderia propiciar.
Essa divisão de classes, injusta e imoral continuará sendo aceita com maior naturalidade enquanto não se exterminar a corrupção que tem três raízes profundas: a psicopatia acentuada, a falta de cultura ética corroída nesses últimos 14 anos, e a incompetência sem limites.
Kiyoshi Harada é jurista, acadêmico com 31 obras publicadas e Presidente do Conselho Deliberativo da Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa e de Assistência Social.