Imigração, parentesco e religiosidade

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O antropólogo Victor Kebbe fala sobre sua tese de pós-doutorado e como esses elementos são significados na comunidade okinawana no Brasil Victor Kebbe

Estudar a prática das yuta entre as famílias de descendentes de okinawanos na cidade de São Paulo, visando compreender as maneiras como o parentesco é pensado e ressignificado dentro desta complexa relação entre imigração japonesa, parentesco e religiosidade, é o objetivo do antropólogo Victor Hugo Kebbe, de 31 anos, em sua tese de pós-doutorado “Quando os mortos chamam – parentesco, imigração e religião vistos nas práticas da yuta no Brasil”, realizada na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

Em entrevista para a Mundo Ok, Victor Kebbe fala sobre essa complexa relação e como as famílias que vivem no Brasil significam e vivem as tradições okinawanas. Confira o bate-papo.

Mundo Ok: O que te levou a iniciar pesquisas relacionadas às famílias okinawanas no Brasil? Este estudo servirá para alguma base de dados para entidades nipo-brasileiras? 
Victor Kebbe:
Durante minha pesquisa de doutorado me deparei com vários desafios no que concerne as famílias de descendentes de japoneses vivendo no Brasil ou mesmo no Japão enquanto decasséguis. Separados em dois países, estas famílias precisam a todo momento traçar estratégias e elaborar arranjos familiares alternativos para dar conta da distância e dos parentes ausentes.Como desdobramento de meu Doutorado e, tendo em mente o quão particulares são as noções de parentesco okinawano, decidi me debruçar sobre as famílias de descendentes vivendo no Brasil, em especial na cidade de São Paulo. Este tipo de estudo pode ser útil para compreendermos como as famílias okinawanas se organizam no Brasil dos dias de hoje, buscando compreender as formas como a migração para o Brasil e a manutenção das tradições afetam a sua organização interna. Como é verificada em vários estudos, a religiosidade okinawana é deveras importante, atuando como catalisadora na manutenção de tradições que muitos descendentes hoje em dia desconhecem. É neste cruzamento entre migração, parentesco e religiosidade que pretendo assim compreender os arranjos familiares modernos, algo que pode ser evidentemente útil para a própria comunidade.

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MOK: E como é a essa relação das famílias com a religiosidade?
VK: É possível encontrar pelo menos dois tipos bastante interessantes de relações envolvendo as famílias de descendentes de okinawanos no Brasil e a religiosidade, sendo um deles aquele das famílias que são voltadas às tradições, à espiritualidade, ao suporte das Yuta, ao culto aos ancestrais, às cerimônias e eventos, assim como também pude encontrar famílias de descendentes desprendidas de todo esse contexto, muitos atribuindo o distanciamento à nova conjuntura de viver no Brasil e por serem de gerações mais jovens. Ambos os casos coexistem.

MOK: Qual é a importância e de que maneira as yuta influenciam na vida dessas famílias que vivem no Brasil?
VK: Dentro da cultura religiosa okinawana as yuta são responsáveis pela mediação dos indivíduos com a complexa cosmologia okinawana: são elas que conseguem fazer previsões para o futuro, identificar causas de infortúnio, ler os livros sagrados e fazer a ligação entre o mundo dos vivos e dos ancestrais. Dessa forma, as yuta atuam diretamente nas questões de desarranjos e problemas individuais e familiares. As Yuta no Brasil atuam da mesma forma, mantendo, reforçando ou recuperando os laços com a cultura religiosa de Okinawa.

MOK: É possível perceber transformações dentro das famílias de imigrantes e descendentes no Brasil?

OraçãoVK: Desde a chegada dos primeiros imigrantes de japoneses em 1908 que temos observado alterações na ordem familiar, já trazendo desafios para a percepção do que é a “família japonesa” fora do Japão. Especificamente sobre as famílias de descendentes de okinawanos,o meu objetivo desta pesquisa é compreender justamente como ocorreram as transformações dentro destas famílias no Brasil dos dias de hoje, considerando que já temos muitos descendentes jovens e com percepções diferentes de Japão, família e religiosidade do que seus pais e avós. Trazer à tona a questão da religiosidade e o papel das yuta enquanto mediadora entre os vivos e os ancestrais nos auxilia na compreensão de como o parentesco okinawano é introduzido ou (re)introduzido entre estes descendentes que se dizem “desprendidos” das tradições. Este choque de percepções pode nos dizer como o parentesco okinawano funciona no Brasil dos dias de hoje.

MOK: Qual o tipo de relação que os okinawanos têm com os seus ancestrais?
VK: Como percebe a cultura religiosa okinawana, existe uma relação de profundo respeito dos vivos para com os ancestrais, recorrendo ao culto, cerimônias e rituais bastante específicos que devem ser consagrados de tempos em tempos. A questão permeia a estrutura de parentesco okinawano, trazendo hierarquicamente deveres e obrigações dos mais novos para com os mais velhos, tradição que é transmitida para os herdeiros. Dentro desta percepção, os ancestrais são considerados, dentro da lógica do parentesco okinawano, devendo os vivos respeitar e cuidar dos espíritos dos falecidos com oferendas e orações no butsudan (oratório).

MOK: Possíveis falhas com o culto aos antepassados geram problemas de ordem estrutural nas famílias okinawanas? Como os descendentes lidam com essa questão?
VK: Como percebe a literatura acadêmica sobre o assunto, se estes ancestrais não são reverenciados de forma correta podem ficar infelizes e assim se tornar “frios”, causando infortúnios de toda a sorte na família de seus descendentes vivos. No Brasil parte dos descendentes de okinawanos com estes problemas recorrem às Yuta, recuperando assim parte das tradições como são realizadas em Okinawa. Como mediadoras entre o mundo dos vivos e dos mortos, elas são capazes de identificar as falhas estruturais, os ancestrais com problemas e assim apontar soluções para a reparação.
MOK: Os ritos e costumes que envolve o culto aos antepassados ainda são realizados mesmo pelas gerações mais novas de descendentes? No futuro – e com a miscigenação cada vez maior nas famílias nipo-brasileiras –, como você enxerga a manutenção das tradições?
VK: Tenho informantes descendentes de okinawanos mais jovens que desconhecem o culto aos ancestrais, assim como também há jovens que mantêm uma estrita relação com a espiritualidade okinawana como forma de sanar os infortúnios dentro de suas famílias. Tal quadro nos mostra a diversidade que já existe entre os descendentes de okinawanos vivendo no Brasil, com percepções variadas sobre Japão e Okinawa que diferem em muito a visão de seus pais, avós e ancestrais.Estas trajetórias nos indicam a persistência e ressignificação de tradições no mundo contemporâneo, mostrando o quanto a cultura pode ser dinâmica, sempre em movimento e transformação. Apesar de ser impossível fazer algum tipo de previsão para onde caminham estas transformações, as yuta e os oratórios dentro de casa, assim como vários símbolos e tradições permanecem, talvez não da mesma maneira como imaginaram os imigrantes e descendentes mais velhos, mas sob novas formas, ainda tendo Okinawa como horizonte

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