Análise: Limpando os corações, por Nelson Fukai

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Com o filme “Corações sujos” em cartaz, o assunto Shindo-Renmei parecia que ia voltar à tona, mas isso não aconteceu, pelo menos na intensidade esperada…

O livro foi um grande sucesso, mas o filme tem sido um fracasso de bilheteria, motivado talvez pela forma como o assunto foi abordado. Ao invés de apresentar um conflito histórico, com todas as suas nuances, o que se vê é uma historinha cheia de equívocos, que acaba se transformando em um bom filme de ficção. Porque não dá para acreditar que um imigrante japonês, mesmo o mais fanático nacionalista, tenha matado pessoas amigas, com quem mantinha relações familiares próximas, somente por divergência de opinião sobre o resultado da guerra. Também foge da realidade o filme mostrar um ex-coronel do exército imperial japonês aproveitando-se da situação para enriquecer a custa de patrícios ignorantes. Quem conhece a retidão moral do militar japonês de então, sabe que uma situação dessa só mesmo em filme. E o final mostra outro grande equívoco. Pessoas que eram crianças no final da guerra, pouco ou nada se lembram do episódio. O movimento de pacificação acontecido dentro da comunidade minimizou os sentimentos de rancor e ódio. Talvez até os anos 60, um ou outro caso ainda persistisse, mas já faz um bom tempo que não se houve falar de alguém que ainda guarde rancor por esse motivo.

O que se esperava do filme é que mostrasse o conflito de uma forma mais profunda, dentro do contexto da época. Os imigrantes japoneses de então, apresentavam características bastante heterogêneas. Intelectuais e ignorantes, ricos e pobres, urbanos e rurais, com muito ou pouco tempo de Brasil, a diversidade imperava. Disso tudo resultava em diferenças de opiniões que giravam basicamente em torno de enriquecer e voltar ao Japão, ficar, mas mantendo os padrões nipônicos de conduta ou começar de vez o processo de integração. Não devia haver uma separação bem clara, mas era natural que estivesse ocorrendo a formação de grupos com ideias distintas. E essa divisão, que começou alguns anos após o início do processo imigratório, tomou uma forma mais clara durante a Segunda Guerra Mundial e estourou como conflito após o fim da mesma. Não tenho nenhuma base para fazer esta afirmação, mas apenas num primeiro momento a maioria dos imigrantes não acreditou na notícia da rendição do Japão. Em pouco tempo tiveram que enfrentar a dura realidade. Agora vai uma grande distância entre aceitar a derrota e ficar alardeando este fato, como o tal movimento de conscientização. Não precisava disso. A elite da comunidade perdeu uma grande chance de ficar calada. O tempo se encarregaria de cicatrizar esta grande ferida. Perder a guerra já era uma grande dor e saber que alguns patrícios tinham se resignado com o fato tão rapidamente, era inaceitável.  Daí que os fanáticos ultranacionalistas passaram a ter a simpatia da grande maioria da comunidade, mesmo depois de assassinarem alguns líderes do movimento de conscientização. Acreditar na vitória ou na derrota do Japão pode ter sido a questão da discórdia num primeiro momento do conflito, mas depois, o que estava em jogo foi algo mais profundo. Foi o temor dos imigrantes de perderem os laços com o Japão (e tudo que isso representava), se uma integração plena viesse a acontecer. E a ameaça de integração plena era representada pelos derrotistas ( os que aceitaram rapidamente a derrota do Japão na guerra), daí o motivo do ódio dos que mantinham a alma nipônica. Quando viram que esta ameaça não aconteceria e que muitos patrícios carimbados como derrotistas eram tão patriotas como eles, os vitoristas e seus simpatizantes se aquietaram. E a não ser por alguns raros casos isolados, o conflito virou história daí em diante.

Cinquenta anos depois, vemos que este é um conflito que nem precisaria ter acontecido. Hoje estamos todos com os corações limpos e se brigas e picuinhas ainda acontecem na comunidade nikkei, é porque o pavio curto e a intolerância fazem parte do nosso DNA. Mas isso já não mata mais ninguém e, além disso, a vida seria muito monótona se tudo seguisse na calmaria e na santa paz!!!

 

 

 

 

 

   NELSON FUKAI é engenheiro, escritor e analisa questões do presente e passado da comunidade      nipo-brasileira. E-mail: nelsonfukai@yahoo.com.br