Para falar sobre essa profusão de arte e técnicas, a Mundo Ok conversou com alguns tatuadores, que contaram suas histórias, falaram sobre o mercado e têm em comum o conhecimento sobre o estilo oriental
Texto: Tamires Alês / Fotos Divulgação
Estudos indicam que a prática de tatuar o corpo é tão antiga quanto a humanidade. Ela foi inventada várias vezes e não possui uma origem determinada. Surgiu em todos os continentes com diferentes intenções, motivos, técnicas e resultados. Porém, a arte milenar só se popularizou com a invenção da máquina elétrica de tatuar, em 1891. A técnica se espalhou pela Europa, Estados Unidos, e começou a ganhar maior visibilidade no início do século XX.
No Brasil, o precursor da tatuagem moderna foi o dinamarquês, Knud Harald Lucky Gegersen, também conhecido como Mr. Tattoo ou Lucky. Ele desembarcou em terras brasileiras em 1959, em Santos, cidade em que instalou sua loja e estúdio, mais especificamente na badalada Boca, zona de boemia e prostituição da área portuária. Responsável não só pela chegada da técnica no Brasil, mas também por sua popularização, a trajetória de Lucky foi tão marcante que o dia 20 de julho, data da sua chegada ao país, foi escolhido para ser o Dia Nacional do Tatuador.
Inspirados pelo seu trabalho, outros tatuadores começaram a desenvolver a arte, que foi ganhando corpo e se espalhando pelo país na década de 1980. Ainda que de forma mais rústica, já que o acesso aos equipamentos e instrumentos era limitado, uma vez que o Brasil não tinha produção própria e tudo tinha que ser importado. Nesta época, a tatuagem era marginalizada e restrita a grupos específicos.
Foi só no final da década de 1990 que a tatuagem começa a se popularizar, a atrair cada vez mais fãs e passa a ser vista como uma expressão individual de arte, e deixa de carregar o estereótipo marginal de poucos anos antes.
Mais do que isso, passa a ser um mercado lucrativo, o segundo maior do mundo – perdendo apenas para os Estados Unidos –, que movimenta milhões todos os anos. De acordo com dados do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas – Sebrae, entre os anos de 2009 e 2012, as áreas dedicadas aos serviços de tatuagens e piercings aumentaram 413%. Entre 2016 e 2017, o setor teve um crescimento de 24,1%.
Só na capital paulista, são mais de 3 mil estúdios de tatuagem e piercing cadastrados, e mais de 300 mil tatuadores atuantes. E o valor de uma tatuagem pode variar de R$ 200,00, para um pequeno desenho, a R$ 30 mil, para um fechamento de costas, dependendo do desenho e do artista.
Ainda não existe um censo brasileiro que mostra quantas pessoas têm tatuagem no país, mas, com certeza, este número cresce a cada dia. E pode ser comprovado pelos estúdios de tatuagem que surgem todos os anos, pelo crescimento das indústrias brasileiras que abastecem este mercado e pelas convenções do setor, realizadas em todo o Brasil, e que atraem milhares de pessoas todos os anos.
“Quando eu comecei a tatuar, na década de 1980, a tatuagem estava começando no Brasil e não existiam cursos, os poucos tatuadores não queriam ensinar e quase não tinham equipamentos, e o que tinha era bem ruim e muito caro. A gente ia adaptando, era tudo muito artesanal”, lembra o tatuador Ichimatsu Okumura, conhecido como Chimato, de 51 anos.
“Hoje o mercado evoluiu muito, não só no Brasil, mas no mundo todo. Já vem tudo pronto, os produtos estão cada vez melhores, com mais qualidade e tecnologia e o valor é muito mais acessível”, esclarece o artista.
Em seu estúdio no Tatuapé, Chimato faz diversos tipos de tatuagem. “O pessoal me procura mais pelos desenhos orientais, mas eu tenho facilidade para tatuar qualquer serviço, grande, pequeno, outras técnicas”, enumera.
Os variados estilos
No mundo da tatuagem, assim como na arte, existem inúmeros estilos e correntes artísticas e cada tatuador desenvolve um ou mais e sua técnica específica. São anos de estudos e muita prática para se tornar um bom profissional nesta área.
Do old school ou tradicional (desenhos como caveiras, âncoras feitos com contorno grosso e poucas cores), passando pelo pontilhismo, realismo, geométrico, maori (tatuagem popular de uma tribo neozelandesa), até o graywash (feitas em tons de cinza), sketch (estilo rascunhado) e aquarela. Os estilos são muitos e, entre eles, um tem se de destacado: o oriental.
Seja o tradicional japonês, com suas regras e traço marcante ou os livremente inspirados, desenvolvido por cada tatuador, o estilo da terra do sol nascente, que retrata elementos da cultura como carpas, gueixas, samurais, flores e dragões, invadiu o ocidente e conquistou os fãs da arte, em especial, os brasileiros.
“A tatuagem tradicional japonesa apresenta um desenho mais duro, mais impactante, tem uma forma mais rústica. Trabalha com bastante preto no fundo e cores bem sólidas no desenho principal”, explica o tatuador Christian Arae, de 51 anos, que começou a tatuar na década de 1980 e passou 20 anos no Japão desenvolvendo sua arte.
Durante a temporada no Japão, entre 1990 e 2010, Arae conviveu com grandes tatuadores japoneses, chamados de Horishi, como Rei Mizushima; o lendário Horiyoshi III, um dos tatuadores favoritos da Yakuza, a máfia japonesa; e Hori Hiro. “Logo que comecei a tatuar no Japão, o Mizushima me convidou para tatuar com ele. Foi um grande aprendizado, porque ele viajava o mundo e conhecida técnicas de vários países”, lembra Arae. “Também fui um dos únicos brasileiros e estrangeiros a conseguir tatuar com Horiyoshi III, um dos tatuadores mais famosos do Japão e do mundo. Nos tornamos amigos e fiquei uma semana tatuando no estúdio dele. Ele que me deu o nome de Horiatsu”, lembra com orgulho. “Já o Hiro foi muito importante nos anos que tive meu estúdio no Japão, ele sempre me ajudou bastante”, conta Arae, foram cerca de 10 anos com o negócio no Japão.
Com todos esses anos de experiência, Arae desenvolveu sua própria técnica de estilo oriental. “Eu não faço o tradicional japonês, falo para meus clientes que faço o estilo Christian Arae que é inspirado no estilo oriental”, conta. “Todas as minhas tatuagens são desenhadas a mão livre, direto na pele (free hand), assim consigo trabalhar melhor com a anatomia de cada corpo e tenho melhores resultados”, conta o artista, que possui dois estúdios em São Paulo, o Zero Sen Tattoo Studio, na Consolação, e o Mani Fest Tattoo, em São José dos Campos, onde desenvolve o seu trabalho.
Priscilla Saori Goto, conhecida no meio como Pri Saori, também caracteriza seu trabalho como estilo livre japonês. A nissei, de 33 anos, formada em Design Digital, trabalhou por cerca de 10 anos em agência de criação e publicidade, e há quatro anos resolveu entrar no mundo da tattoo. “O tatuador Fábio Massashi foi meu mestre, ele foi me orientando, me explicando a técnica e eu fui desenvolvendo meu estilo próprio”, lembra.
Há nove meses Pri inaugurou seu estúdio na Liberdade, onde segue estudando e aprimorando sua arte. “Estudo pinturas antigas, as regras da tatuagem tradicional japonesa, tamanhos e composições. Os estudos são contínuos, estamos sempre evoluindo”, destaca. Por lá, ela também cria seus desenhos e atende seus clientes, em um ambiente intimista e acolhedor. “Sempre gostei de desenhar, desde pequena, sempre fiz ilustrações. Então, quando um cliente me procura com uma ideia de tatuagem eu faço o meu desenho, adapto para o meu estilo e nunca repito uma arte”, revela.
Tebori – a tatuagem artesanal japonesa
O Tebori, que significa gravar, entalhar a mão, é a tradicional arte japonesa de tatuar manualmente, que surgiu no início do século XIX. A técnica consiste em usar várias agulhas de aço enfileiradas, presas a uma haste de bambu, madeira ou marfim. Uma arte puramente artesanal que ainda sobrevive ao longo das gerações.
Porém, mesmo no Japão, cada vez mais, os profissionais da arte tebori se tornam escassos. No Brasil, alguns poucos profissionais utilizam a arte, como Toshio Shimada, de 43 anos, que acompanhou dois mestres especialistas em tebori na época que viveu no Japão. “Não é qualquer desenho que dá para tatuar com o tebori, além disso, o custo é muito alto, já que o trabalho é bem demorado”, explica Shimada. “Por isso, utilizo mais a técnica em eventos e convenções, no dia a dia do estúdio não é muito viável”, esclarece.
Filho de imigrante japonês, Shimada aprendeu a tatuar ainda criança, com seu primeiro mestre, seu pai, entusiasta da arte. O seu estilo foi moldado aos poucos e influenciado, principalmente, pelos mais de 20 anos que viveu no Japão com sua família. Foi lá que Shimada começou a trabalhar profissionalmente e se tornou referência no estilo oriental. “Cheguei a ter até quatro estúdios no Japão. O primeiro inaugurei em 1994, na Província de Gunma-Ken, voltado para o público brasileiro”, conta.
Em 2014, o tatuador voltou ao Brasil e inaugurou seu estúdio, no bairro da Liberdade, o Shimada Tattoo, onde tatua e comanda uma equipe de diversos tatuadores. “Aqui no estúdio trabalhamos sete dias por semana, com vários estilos, entre eles o comics, que envolve todo o universo geek, técnica que tem despontado no mundo da tatuagem”, comenta.
No universo das cores
Pinceladas coloridas, sutis e delicadas. Desenhos que se parecem mais com uma pintura, só que ao invés de uma tela, a obra é feita na pele. A técnica da aquarela, em especial, o trabalho de Marcel Kuo surpreende pela beleza e perfeição dos detalhes. O tatuador, de 38 anos, foi um dos precursores do estilo no Brasil, há cerca de oito anos. “Aprendi sozinho e criei tudo na raça, levou muito tempo para desenvolver a técnica que eu considero ideal”, conta. Segundo ele, sua tatuagem não sangra e é menos dolorida.
Filho de taiwaneses e formado em Design Gráfico, Kuo tem um estilo próprio de atendimento, que difere da maioria dos estúdios comerciais. “Só faço uma tatuagem por dia, geralmente, fechamento ou grandes trabalhos e só realizo projetos individuais”, explica. “Primeiro tenho uma conversa com o cliente para conhecer um pouco a sua personalidade e entender o que e por que ele quer tatuar. A partir daí desenvolvo uma arte exclusiva para ele. Gosto de fazer tatuagens que contam uma história, que representem a pessoa e não um simples desenho”, ressalta.
Com um ambiente clean, tranquilo e aconchegante, seu estúdio na Liberdade atrai clientes de todas as regiões, interessados na técnica da aquarela e no estilo oriental desenvolvido pelo tatuador. Uma delas é a advogada, Patricia S., de 33 anos, neta de japoneses. “Eu desejava uma tatuagem que remetesse as minhas origens, por isso, queria tatuar um tsuru, que tem uma simbologia importante na cultura japonesa”, conta. “Depois de conversar com o Marcel ele resolveu acrescentar a gueixa e outros elementos na tatuagem. Ele analisou o meu perfil e disse que eu era uma pessoa delicada, porém com uma força interior muito grande”, lembra.
O resultado, segundo ela, não poderia ser melhor. “O Marcel é muito detalhista e analisa cada curva do corpo para que o desenho não fique estático. Essa é grande diferença dele para os outros, um trabalho extremamente personalizado e único”, completa.
Retranca:
A história e a evolução da Tatuagem no Japão
A especialista e pesquisadora da cultura japonesa, Lumi Toyoda, explica que a história da tatuagem no Japão remete ao Período Neolítico. Estudos realizados por arqueólogos revelam um forte indício de tatuagem, por volta de 3000 anos atrás, na face de habitantes da época, verificada em peças de barro de figuras humanas encontradas em sítios arqueológicos. “Havia o significado de proteção à magia, servindo como amuleto”, conta Lumi.
Na ilha de Okinawa, as mulheres faziam tatuagem, o hajichi, nas mãos. Eram praticados como ritual de maioridade, boa sorte e fertilidade, em meninas de 13 anos – em algumas regiões a partir de 6-7 anos. O processo, feito com bambu ou madeira para machucar os dedos e introduzir tintas, demorava muitos anos. Completar a mão esquerda com hajichi era o sinal de maioridade e a mão direita, indicava que a mulher era casada.
Na oposta extremidade do país, na Ilha de Hokkaido, o povo nativo Ainu fazia tatuagem nos lábios de meninas, a partir de 7 e 8 anos, prolongando-os e dando pequenos cortes com navalha e esfregando pó de carvão vegetal. Essa prática era intimamente relacionada com a fé espiritual. “Quando fui ao Japão, visitei uma aldeia Ainu e conheci algumas anciãs que explicaram a forma dolorida de incisão e aplicação do carvão, e os muitos anos para completar o processo. Fiquei estarrecida pela crueldade”, lembra Lumi. “Na atualidade, as moças bonitas e exóticas, de estereótipo diferente das demais japonesas estão livres desse atroz costume”, revela.
Por volta do século VIII, durante o período Nara, por influência do confucionismo que veio da China e abominava ferir o corpo, a cultura da tatuagem foi cessando aos poucos e só voltou a florescer durante o Período Edo (1603-1868), governado por samurais em regimes militares, os xoguns.
A tatuagem volta com toda força e requinte, renascendo juntamente com a tranquilidade desse período. A tatuagem se transforma em verdadeiras obras de arte que envolve meio corpo ou corpo inteiro com desenhos refinados e cores vivas. Alguns símbolos eram mais comuns como dragão, cobra, tartaruga, estátua de buda e demônios.
Por outro lado, surgiu por volta do início do século XVIII, tatuagens de punição a condenados. “Algumas eram feitas em locais discretos para o quimono cobrir, como nos braços e antebraços. Outras em locais visíveis como nas testas e face em geral. A reincidência do crime aumentava a quantidade de marcas para as pessoas se alertarem”, detalha a especialista.
A prática de tatuar criminosos foi abolida, porém, anos mais tarde, a tatuagem passou a fazer parte da vida dos integrantes da máfia Yakuza. “Na atualidade, a tatuagem tradicional japonesa continua sendo usada pelos integrantes da máfia”, esclarece Lumi. Um dos motivos dessa arte ainda ser cercada de preconceito no Japão.
“Culturalmente ainda é forte o preconceito, as pessoas enxergam a tatuagem como algo negativo. Tanto que até hoje não existe uma indústria formal, legalizada, de produtos para tatuagem no Japão”, descreve Shimada.
“Os tatuados não podem frequentar banhos públicos, piscinas e muitos locais em que expõem seus corpos. Algumas empresas ainda resistem em contratar funcionários tatuados e pessoas da velha geração opõem-se a essa prática”, completa Lumi.
“Com a globalização isso vem mudando aos poucos. Os mais jovens já começam a fazer mais tatuagens e a expor em alguns locais públicos, como a praia. Mas, sempre desenhos no estilo americano e ocidental. A tradicional japonesa só as pessoas marginalizadas como yakuza, caminhoneiros e profissionais da construção civil que fazem no Japão”, finaliza Arae.
BOX:
Informações
Chimato Tattoo
Rua Diamante Preto, 179 – Tatuapé
Tel.: 11. 98656-3576
Hari Tattoo Studio (Pri Saori)
Rua da Glória, 73 – Liberdade
Tel.: 11. 98896-1331
Mani Fest Tattoo (Christian Arae)
Avenida Ouro Fino, 110 – Bosque dos Eucaliptos (São José dos Campos)
Tel.: 12. 3206-2418
www.instagram.com/christianhoriatsu/
Marcel Kuo
Rua Galvão Bueno, 714 (subsolo) – Liberdade
Tel.: 11. 96590-0251
Studio Shimada Tattoo
Rua Galvão Bueno, 28 – Liberdade
Tel.: 11. 3275-0093