Opinião: A ditadura que o povo não viu

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Era o começo do ano de 1964. Com meus 11 anos, iniciava o curso ginasial em Marília, ansioso por tudo que os mais velhos diziam da vida ginasiana: muito esporte, muita farra e muitas meninas. Não tinha nem um mês de aula e dona Rute, professora de música, convocou todos os alunos a participarem de uma marcha, que, segundo ela, era para defender a família e a ordem no país contra os comunistas…

Foi uma marcha festiva com muitas faixas e participação de todos os setores da sociedade. Alguns dias depois, exatamente no dia primeiro de abril, as esquinas da área central da cidade foram tomadas por militares, jovens do “Tiro de Guerra”. Diziam que, ajudado pela marcha, os militares tinham expulsado o presidente João Goulart da presidência e, por um período, eles governariam o Brasil. Até o final de 1968, isto é tudo que aconteceu na minha vida em relação à tomada do poder pelos militares, em 31 de março de 1964.

Porque naquele período dos anos 60, quando eu tinha entre 11 e 16 anos, explodiu a grande revolução social e cultural, tanto aqui quanto no resto do mundo. Lá fora estouravam os Beatles, Rolling Stones, entre outros. No Brasil, a Jovem Guarda, Bossa Nova e os festivais pegavam fogo. Mini-saia, botinhas, calça boca de sino, rock and roll, cuba-livre, ié-ié-ié, era muita coisa a ocupar a vida dos adolescentes, não tinha como dar atenção à política. O povo não tinha muito do que reclamar, as escolas e os hospitais públicos prestavam bom serviço; ganhava-se pouco, mas vivia-se bem com esse pouco e os índices de violência eram baixíssimos.

Quando vim para São Paulo, no início de 1969, as passeatas dos estudantes universitários aconteciam frequentemente. Poucos meses antes os militares tinham baixado medidas duras, instalando a ditadura no país. Agora, a maioria dos jovens estava conscientes da situação, mas poucos aderiram aos movimentos organizados de luta contra o regime. Ao mesmo tempo que a repressão aumentava, o Brasil começava a apresentar bons índices de crescimentos – em torno de 10% ao ano -, melhorando consideravelmente as condições de vida do povo, principalmente da classe média-baixa do centro-sul do país. Hidroelétricas, metrôs, obras de saneamento, aeroportos, siderúrgicas, rodovias, telecomunicações, ferrovias, os militares modernizavam o país, dando ao cidadão comum a sensação de que o país estava no rumo certo. Daí que, tirando um pequeníssimo grupo de gente mais intelectualizada e engajada, todo o resto da população queria mais era melhorar de vida, os jovens frequentando colégios públicos e universidades e depois arrumando bons empregos e os mais velhos comprando sua casa própria pelo BNH, ou seu fusquinha financiado a perder de vista. Os nordestinos e uma multidão de antigos trabalhadores rurais invadiam as grandes cidades industriais e se tornavam operários especializados, ganhando bons salários. Lula e seus irmãos são exemplos deste fenômeno. Toda essa gente nem queria saber quem estava no poder. Certamente que, se a economia continuasse naquela toada do chamado “Milagre Econômico”, com alta taxa de crescimento, o regime militar poderia ter durado ainda um bom tempo. Mas, com a conjuntura econômica já não tão favorável, os aumentos salariais que seguiam regras impostas pelos militares, começaram a ficar abaixo da inflação, que começava a sua escalada. Este arrocho salarial foi o estopim para que as greves, na época proibidas por lei, explodissem por todo o país. O povão, enfim, estava contra os militares, não por motivos ideológicos, mas porque os salários estavam perdendo o poder de compra. E aí começou a votar no partido de oposição, o MDB, que até então só fazia figuração. O povo queria colocar fim ao regime visando uma melhor distribuição de renda, cujos militares, com a história de que primeiro tinha que crescer o bolo para depois dividir, não estavam mais conseguindo. E o povo brasileiro apostou firme no MDB, no PSDB e, depois, no PT, mas infelizmente perdeu a aposta. Nos quase vinte e cinco anos desta Nova República, o país avançou pouco e para o lado errado. A infraestrutura do país no geral é um caos, os serviços públicos são deploráveis e a corrupção e as negociatas se alastram por todos os órgãos governamentais. Grandes obras são festejadas quando começam, mas nunca terminam e no caminho são bilhões que desaparecem.  A democracia brasileira do século 21 resume-se numa troca de interesses particulares entre os poderosos da política e da economia. Será que esta ditadura atual, que a elite política-empresarial nos impõe, não é mais perniciosa ao país do que a dos militares? Será que não existem no Brasil líderes que possam ajudar a arrumar este país, sem ter que recorrer aos militares? Porque se a bandalheira continuar, não demora muito para a história se repetir. Quem viver, verá!!!

NELSON FUKAI é engenheiro, escritor e analisa questões do presente e passado da comunidade nipo-brasileira. E-mail: nelsonfukai@yahoo.com.br.