Da culinária dos primeiros imigrantes às novas tendências. O especial da Mundo OK tenta passar pelas diversas fases da gastronomia japonesa em terras tupiniquins e ressalta as adaptações que ela sofreu ao longo dos 105 anos de imigração
O Brasil é um país miscigenado. Na gastronomia isso não é diferente. E um dos responsáveis por essa mistura de aromas e sabores são os japoneses, que transformaram a mesa brasileira em um caldeirão de receitas multifacetadas, que apaixonam os olhos e encantam o paladar.
A culinária japonesa chegou às terras tupiniquins em 1908, com os primeiros imigrantes. No início, os novos moradores sentiram muita dificuldade para se acostumar a culinária brasileira, mais pesada e gordurosa que a japonesa. Então, não pensaram duas vezes e começaram a adaptar – como podiam – os alimentos brasileiros que tinham a disposição a uma refeição similar à japonesa.
“Foram adaptações nascidas da necessidade e inspiradas no desejo básico de resgatar os sabores que remetiam à terra natal, que evocavam o lar e as raízes deixadas para trás, tão longe no tempo e no espaço”, conta a chef e proprietária do restaurante Aizomê, Telma Shiraishi. “Mesmo estando do outro lado do mundo e diante de costumes, ingredientes, clima e estilo de vida tão diferentes, houve o esforço para manter o hábito de comer (de hashi), de consumir a tigela de arroz com o missoshiru, as conservas e as amadas verduras e os pescados”, detalha.
Como não tinham condições de importar os alimentos japoneses, esses imigrantes começaram a cultivar por conta própria verduras e legumes e a fabricar, artesanalmente, ingredientes que formam a base da culinária japonesa. “O missô e o shoyu eram feitos em casa, as conservas eram adaptadas com os ingredientes brasileiros. O gengibre substituía o wasabi, o sashimi era feito de peixes locais, que para os japoneses tinham gosto de terra, então, faziam o possível para mascarar esse sabor. No sushi no lugar da alga utilizavam folha de couve, ou omelete”, enumera o especialista em culinária japonesa e professor de culinária oriental da Universidade Estácio de Sá, Alex Sakatsume. Segundo ele, no interior de São Paulo ainda é possível encontrar famílias que fazem as receitas japonesas da mesma maneira que os imigrantes faziam.
“Até hoje a matéria-prima no Brasil é limitada, principalmente no que diz respeito aos peixes e temperos. Eu sempre estou buscando, fazendo experiências para encontrar em produtos brasileiros os mesmos aromas e sabores de alguns produtos japoneses que não existem aqui”, conta o premiado chef e proprietário dos restaurantes Aizomê e Sakagura A1, ShinKoike, que vive no Brasil há 19 anos.
Mesmo atualmente, revela Sakatsume, a não ser que se importem os produtos, a comida japonesa no Brasil ainda terá “sabor de colônia”, já que até os produtos bases como shoyu, missô e o arroz japonês são diferentes dos vendidos no Japão.
Por outro lado existem as adaptações que seguiram a onda de modismos, a imitação dos modelos de “culinária japonesa” que se tornaram populares em outros países, como os Estados Unidos. “Em uma tentativa de disseminar ainda mais a cultura japonesa, alguns chefs começaram a adaptar os pratos típicos ao paladar ocidental. A adaptação dos sushis e sashimis ao gosto tupiniquim, por exemplo, foi acontecendo aos poucos. Um chef criava e a adaptação ia se espalhando”, afirmaSakatsume. “Também acontecia a adaptação da adaptação. O sushi califórnia, por exemplo, surgiu nos Estados Unidos, mas lá era feito com abacate, no Brasil, ele ganhou mais adeptos com a manga”, conta o especialista. “Daí a inserção de outras frutas, como kiwi e morango, de creamcheese, maionese e outros alimentos foi um ‘pulo’. Depois alguém resolveu fritar o sushi e nasceu o hot roll, uma invenção nossa”, enumera.
E as invenções não param por aí. “Já vi até pizza de sushi, com sushi cortado bem fininho e muçarela. Uma prova que a criatividade brasileira não tem limites”, revelaSakatsume. Com tantas adaptações, o especialista ressalta que o que temos atualmente na maioria dos restaurantes tupiniquins é um sushi brasileiro, não mais um sushi japonês. Porém, essas adaptações, segundo Sakatsume, não são exclusividades dos ocidentais. “Atualmente, alguns restaurantes no próprio Japão também têm sushis adaptados e algumas invencionices”, ressalta.
“Eu como japonês e profissional da culinária japonesa tenho um pouco de dificuldade em aceitar algumas invencionices. Mas essa é uma realidade até no Japão. A nova geração aceita e gosta dessas adaptações, o paladar do japonês também está mudando”, admite Koike.
“Eu tenho minhas reservas, pois essas adaptações nada mais são do que uma imitação da imitação. A referência é no mínimo equivocada. A minha restrição a esse tipo de ‘iguaria’ é o de equivocadamente vender ou transmitir a ideia de culinária japonesa através de um prato tão distanciado de seu conceito original”, justifica Telma.
Além do sushi e do sashimi
Aos poucos, a visão dos brasileiros em relação à gastronomia japonesa tem mudado, e aquele antigo dito de que a comida da terra do sol nascente se resume a peixe cru já não tem tanta força. É o que concordam os especialistas.
“Tirando a capital paulista – que é um mundo a parte em relação à culinária japonesa – a maioria dos brasileiros ainda conhece pouco os pratos mais tradicionais. Já em São Paulo, os pratos típicos já são mais conhecidos, até porque lá é possível encontrar – e tem público para consumir – restaurantes especializados em diversas receitas tradicionais como lámen, udon, curry, katsu (empanados), yakitori…”, detalha.
Para Telma, mesmo com a disseminação de uma ideia meio distorcida do que seria a gastronomia japonesa – limitando sua rica culinária apenas ao sushi e sashimi – a popularização da cultura gastronômica japonesa é positiva, pois permitiu a aceitação de ingredientes, preparações e sabores até antes totalmente exóticos. “Embora essa popularização ainda seja quase que totalmente focada nessas receitas, já existem aqueles que após uma iniciação nos temakis e rodízios de sushi começam a buscar outros pratos e se interessam por aprender mais sobre a riqueza dessa culinária”, conta.
“Os brasileiros ainda conhecem mais a famosa dupla sushi e sashimi, do que os pratos quentes, por exemplo. Mas eu sinto que isso tem mudado. Sinto que as pessoas estão procurando, querendo conhecer outras receitas também”, afirma esperançoso Koike. Segundo o chef há dois lados no mercado brasileiro: de um os rodízios, e do outro os restaurantes mais tradicionais, que trabalham com receitas típicas e uma culinária japonesa mais sofisticada. “Dentro da culinária japonesa existem várias técnicas, os cozidos e ensopados, por exemplo, são pratos muito delicados, que exigem uma técnica apuradíssima do chef, e isso são pouquíssimos restaurantes em São Paulo que oferecem”, explica Koike.
No artigo “Cem Anos de Culinária Japonesa no Brasil”, publicado no livro “Centenário: Contribuição da Imigração Japonesa para o Brasil – Moderno e Multicultural”, a pesquisadora da cultura, etiqueta social e empresarial japonesa, LumiToyoda, explica que a cozinha doméstica japonesa expandiu-se paulatinamente, com o desenvolvimento do comércio de produtos alimentícios típicos em locais de alta concentração de nikkeis. A partir do início da segunda metade do século XX, ocorreu a fixação de lojas e restaurantes em São Paulo, principalmente no bairro da Liberdade. Entretanto, até os anos 70 a culinária japonesa se restringia à comunidade.
Como tudo começou
A real integração entre a culinária japonesa e os brasileiros, só ocorreu a partir de fins da década de 1970. “Como um grande tsunami, a culinária japonesa transformou totalmente o meio gastronômico do Brasil em pouco mais de três décadas. Em 1979, existiam 41 restaurantes japoneses em São Paulo. Atualmente, estão cadastrados mais de 600”, conta Lumi em seu artigo.
Para a chef Telma, esse sucesso da culinária japonesa, não só no Brasil, como sua popularização em todo o mundo, deve-sea uma alimentação ao mesmo tempo saudável, vistosa e saborosa.
“A gastronomia japonesa ultrapassou os limites da comunidade nipo-brasileira, chegou à mesa das famílias brasileiras e hoje ocupa espaços até em restaurantes tipicamente não nipônicos. Considerando todas as churrascarias e restaurantes por quilo (além de outros tipos de estabelecimento) da cidade que oferecem sashimi, sushi, yakissoba e outros pratos da culinária japonesa, os estabelecimentos que servem essa culinária na cidade de São Paulo podem ter o dobro ou o triplo do número informado. Esse fenômeno ocorre também em outras cidades e regiões do Brasil. Assim, a culinária japonesa deixou de ser simples modismo para se afirmar como parte da cultura gastronômica brasileira”, ressalta Lumi.
A próxima “onda”
No Brasil a gastronomia japonesa já passou por várias fases. No final do último século, o boom foi com os rodízios de sushis, que se espalharam por várias partes do País, principalmente na capital paulista, e caíram no gosto dos brasileiros. Nos últimos anos, as temakerias começaram a ganhar o gosto dos jovens e descolados, que optaram pela iguaria japonesa como uma forma de comida rápida, prática e saudável, até nas madrugadas, antes ou depois das baladas.
Mas, qual será a próxima “onda” da culinária japonesa em terras verde e amarela? Se tivesse que escolher, Sakatsume apostaria nos izakayas – espaços que unem bebidas e petiscos típicos japoneses. “Eles são comuns no Japão, mas ainda existem poucos no Brasil, em São Paulo deve ter uns 15, no Rio de Janeiro essa novidade ainda nem chegou, mas acredito que tem tudo para se popularizar no Brasil”, revela.
A chef Telma também aposta nessa ideia. “Sempre há vários nichos a se explorar e vários níveis de consumo. Agora a nova onda é a dos izakayas, mas ainda falta explorar muito cada uma das especialidades da culinária japonesa que não o sushi”, ressalta. “Além da culinária japonesa eu destacaria a culinária nipo-brasileira, a qual eu acredito seja digna de maior aprofundamento, valorização e reconhecimento. O ideal seria conseguirmos unir os conceitos, as técnicas e a filosofia da tradicional culinária japonesa com a grande e rica variedade de ingredientes brasileiros, em um resgate ou uma retomada do fenômeno gastronômico iniciado pelos imigrantes japoneses que aqui se fixaram e trouxeram um pouco do Japão para o outro lado do mundo”, completa.
Já Koike acredita que nos próximos anos os restaurantes com rodízio japonês vão mudar um pouco o estilo. “Acho que a tendência são essas casas partirem para um menu degustação pré-definido ao invés de continuar no sistema do rodízio, que é tudo a vontade e acaba tendo muito desperdício”, prevê o chef. “Já os restaurantes no estilo fastfood, como as temakerias, acredito que vão continuar crescendo. Na última Equipotel (feira do setor de hotelaria e gastronomia) vi até uma máquina de fazer sushi. Deve virar tendência”, conta bem humorado.
Perspectivas para o futuro
E se o mercado da culinária japonesa no Brasil ainda tem espaço para crescer, a resposta é unânime: Sim. “Creio que já tivemos um crescimento surpreendente e as perspectivas são de que cresça ainda mais, não em número talvez, mas em novos modelos e com maior variedade de outras especialidades japonesas ainda muito pouco exploradas”, acredita Telma.
“Se os restaurantes souberem se renova e se inovar ainda tem espaço para crescer. Em São Paulo, por exemplo, teria que crescer mais para as periferias e interior do estado”, aposta Sakatsume.
Para Koike, a tendência é com certeza de crescimento. Porém alguns obstáculos deverão ser enfrentados para que isso aconteça: “Com a chegada dos grandes eventos ao Brasil, como a Copa do Mundo e as Olimpíadas, acredito que muitos restaurantes japoneses serão inaugurados em todo o país. O problema é que as melhores matérias-primas para a elaboração das receitas japonesas estão em São Paulo, já terá um problema de logística a ser enfrentado pelos empresários”, explica o chef. “Outra questão importante é mão de obra qualificada. Está muito difícil encontrar bons profissionais no Brasil, o número de restaurantes está aumentando, mas não temos equipe treinada para trabalhar”, finaliza Koike.
Os mais tradicionais
Confira alguns pratos típicos da culinária japonesa, que não são tão conhecidos pelos brasileiros
** Nishimê
Comida caseira, o nishimê é um típico cozido japonês feito, normalmente, com raiz de lótus, broto de bambu, bardana, inhame, nabo, cenoura, kombu (algas marinhas), tofu, shitake e konhaku (raiz de uma planta, semelhante a uma enorme beterraba). Mas, os ingredientes variam. Cada família usa sua própria receita e tempera o cozido a sua maneira. No nishimê os alimentos vão entrando na panela conforme a ordem de cozimento, primeiro os ingredientes mais duros e de cozimento demorado.
** Gyudon
Prato típico japonês que consiste em uma tigela de arroz coberta com carne e cebola cozidos, temperado com um molho levemente adocicado com dashi, molho de soja e saquê mirin. É possível utilizar quase todos os tipos de carne na elaboração do prato. O gyudon também pode incluir shichimi (pimenta japonesa ralada), benishoga (gengibre picado em conserva), e as vezes é coberto com um ovo cru. O tradicional caldo misshoshiru serve como um bom acompanhamento. O gyudon é um prato bastante popular no Japão, tanto que no país existem restaurantes e cadeias de fastfood especializados na receita.
** Sukiyaki
Receita japonesa tipicamente preparada à mesa, as pessoas vão se servindo a si mesmas à medida que os ingredientes são cozidos. O sukiyaki leva carne, legumes e macarrão udon. É ideal para os dias frios e já foi chamado até
de fondue à japonesa. Durante o período medieval, os camponeses assavam batatas-doce diretamente no fogo e logo outros ingredientes foram adicionados na panela de ferro, onde todos se serviam. A carne só foi acrescentada à receita na Era Meiji (1868-1912), quando seu consumo passou a ser autorizado. Osukiyaki ganhou um valor espiritual típico do japonês que é o de reafirmar os laços familiares, afetivos e de amizade através da mesa, resguardando sua cultura e tradição.
Curiosidades
** O nabo, comum nos pratos japoneses, além de servir para limpar o paladar entre um alimento e outro, é ótimo para tirar manchas de shoyu da roupa, caso pingue durante a refeição.
** Nunca espete o hashi na posição vertical na comida, pois esta é a mesma posição que são colocados os incensos nas cinzas nos oratórios japoneses.** Não aponte algo com os hashis, não os lamba, nem use o seu hashi para servir os outros. Em qualquer pausa durante a refeição, deposite-o em paralelo ao balcão.
** O sushi foi criado acidentalmente. No início era apenas uma forma de conservar o peixe salgado, que era prensado entre porções de arroz cozido.
** Rodízio de sushi e temakeria não existem no Japão, esses tipos de restaurantes, que fazem sucesso no Brasil, são invenções tupiniquins.
** No cardápio do Japão o yakissoba é subdividido por sabores do caldo: shoyu, sal e molho inglês. No Brasil, sua classificação está ligada aos ingredientes: carne, frango, frutos do mar…
Tipos de Sushis
Você sabe diferenciar os variados tipos de sushis? Não? Então, a Mundo Ok vai te ajudar. Com o auxílio do especialista em culinária oriental, Alex Sakatsume, montamos uma listinha com os principais tipos de sushis para você fazer bonito no próximo jantar. Confira:
** Niguirizushi: sushi em que o arroz é apertado na palma da mão e o recheio (peixe, camarão, polvo, kani…) disposto sobre o mesmo.
** Hossomaki: sushi fino enrolado, podendo ser encontrado com vários tipos de recheio como atum, salmão, camarão, pepino, kani.
** Futomaki: sushi grosso enrolado, geralmente é feito com uma combinação de recheios como três tipos de peixes; kani, ovo e pepino.
** Uramaki: enrolado cujo nori (alga) fica no lado interno e o arroz no lado externo, salpicado com gergelim.
** Hot Roll: é uma versão brasileira para um sushi empanado e frito.
** Inarizushi: o arroz é colocado dentro do aguê (soja frita), formando uma espécie de cestinha, seu sabor é levemente adocicado.
** Gunkamaki: sushi em formato de barquinho. Recebe a alga por fora formando um recipiente que pode ser recheado de diversas formas, geralmente com ovas de peixe.
** Oshizushi: sushi “prensado” em uma forma específica sobre uma cobertura e depois cortado. É tradicional de Osaka e parecido com o niguirizushi.
** Temaki: sushi em formato de cone com vários tipos de recheios, principalmente peixes e vegetais.
Ingredientes do bem
Confira os benefícios dos principais ingredientes utilizados na culinária japonesa, de acordo com a nutricionista, membro da câmara técnica do Conselho Regional de Nutrição, Sula de Camargo
Algas
Ricas em proteínas, fibras, minerais e vitaminas – que ajudam a promover o bom humor e bem-estar. Auxiliam na redução do LDL colesterol e do risco de doenças cardiovasculares.
Atum
Fonte de vitamina B6, nutriente importante para produção de serotonina, conhecido popularmente como o hormônio da felicidade, o atum é rico em ômega 3, ácido graxo que reduz o triglicérides alto.
Salmão
Contém tirosina que atua na produção de neurotransmissores que mantêm o cérebro em alerta, além de ser rico em ômega 3, que também reduz o risco de doenças cardiovasculares e degenerativas.
Chá verde
Seus compostos bioativos auxiliam na redução do LDL colesterol, do risco de várias doenças, como câncer e cardiovasculares, além de contribuir na perda de peso.
Gengibre
Rico em antioxidantes, tem ação anti-inflamatória, que diminui as dores no corpo, ação anti-emética (diminui náuseas), é um importante digestivo e auxilia na redução do risco de câncer.
Goya
Possui um sabor amargo e é rico em vitaminas e minerais. Seu principal benefício é a redução da glicemia em diabéticos, entretanto atua como auxiliar as medicações utilizadas.
Soja
É uma importante fonte de proteína vegetal, fibras, vitaminas e minerais, além de possuirisoflavonas(compostos antioxidantes), que reduzem o colesterol, o risco de câncer, osteoporose e controlao diabetes.
Tofu
Tem baixo valor calórico e bom conteúdo proteico e de minerais. Auxilia na redução do LDL colesterol, do risco de doenças cardiovasculares, câncer, osteoporose e alivia os sintomas da menopausa.
Wassabi
Também conhecido como raiz-forte japonesa, a pasta de coloração verde tem um sabor picante muito característico. Auxilia na digestão dos alimentos e tem leve ação termogênica.